sábado, julho 03, 2010

Clarice gostava dos acentos, achava eles dignos. Sempre que escrevia com a caneta de tinta que seu pai lhe dera, sentia um prazer enorme em colocá-los. Como o sentem certos velhos ao assinar o contrato de compra de seu caixão, marrom, de estofado de veludo vinho, com um crucifixo dourado brilhante na frente. Enroscam um pouco o bigode grisalho e emitem um sorriso de canto de boca que suas netas sabem bem, trata-se de orgulho. Não, não iam viver suas vidas no sofá da casa de sua filha mais velha, economizando sua aposentadoria, pra acabar num caixão qualquer pago por aquela que lhe sustentou nos últimos anos. Assim, Clarice passava as tardes, escrevendo, falando de amores. Ela se sentia uma típica mulher, todas elas gostam de falar de amor. Acho que quando Deus inventou a mulher foi justamente pra acrescentar o elemento amor na vida. Aí veio o homem, pra trazer um pouco de distúrbio pra esse sentimento.Era bem isso que Clarice pensava quando se lembrava do romance recente do seu cachorro Juca com a cachorra da vizinha, que estava no cio. Dava dó ver o cachorro esmolando um pouco de amor, passando noites insone, a uivar, a latir. Qual não era sua felicidade quando via ao menos a patinha de Doralice pela fresta da porta. Sacodia o rabinho feliz, e passava ao menos essa tarde com um risinho no rosto. Clarice dizia isso, mas no fundo não falava de Juca, mas dela própria, afinal era só levar Juca pra passear no parque pra ele esquecer Doralice, balançava o rabinho, levantava a patinha em cada banco, corria feliz, latia para as crianças. Assim, aquilo que Clarice achava de Juca estava impregnado era na sua percepção das coisas. Via Juca pela sua própria lente distorcida. Mas ela não sabia disso. Então deixa ela se enganar, pelo menos ela não sofre pelo seu próprio amor, sofre apenas de pena do cachorro. E continuava ela, arrumando maneiras de trazer pequenas felicidades para o cão, para que ele esquecesse sua dor, fazendo assim, sem saber, ela própria esquecer da sua. Juca sabia disso tudo e maliciosamente, para que a dona lhe ajudasse, fingia estar amando, quando na verdade queria apenas trepar com a cachorra que ele achava uma bela de uma gostosa.