domingo, setembro 13, 2009

O encanto de Val


Um dia Helena estava lavando os pratos, cantarolando baixinho, quando olhou pela janela viu que no jardim tinha nascido uma florzinha lilás. Ela nunca tinha visto flor igual, era pequena e tinha as pétalas bem delicadas, era só encostar um pouquinho o dedo pra sentir a maciez. Foi nessa hora que Helena soube que estava esperando Val. Ela sempre teve certeza que quando brotasse uma sementinha dentro dela, ela receberia algum sinal. E foi assim.

À medida que Helena sentia a criança crescer dentro dela, ela sentia uma força tão grande de viver! Aquele bebê era a maior força vital que ela já havia sentido. Não havia maneira de ser mais feliz. Não imaginava ela o que sentiria quando Val nascesse, ela tinha até medo desse momento, medo de não poder mais abrigar seu filhotinho de todos os perigos. Nessas horas se sentia mesmo como aquela galinha mãe, que quer os pintinhos debaixo das asas. E mais do que isso, ela não conseguia pensar em como seria viver só, a partir de então, como não abrigar mais o outro ser dentro de si, como tornar-se independente de novo...

Mas, quando Val nasceu, Helena e Pacheco, seu marido, descobriram que a felicidade ainda podia ser maior do que aquilo que sentiram nos nove meses de gestação. Ela se expandia dentro deles cada vez que olhavam praqueles olhinhos puxadinhos e bochechinhas salientes. Cada gritinho que a menina dava fazia essa imensidão de amor crescer mais e mais.

E foi na terra fértil desse amor tão grande que Val foi gerada. E como não podia ser diferente, esse amor também fazia parte do próprio ser da menina. Ela não conseguia viver sem amar, pra ela as duas palavras eram sinônimos. Assim, quando Val estava brincando com suas panelinhas no quintal, cozinhando pra todos os bichinhos que estivessem por perto, ela queria mesmo era fazer todos eles felizes. Ficava toda alegre ao imaginar que a lagarta tinha engordado muitas gramas com a sopa de papoula que ela tinha preparado. E o sapo então? Tava gordinho, gordinho de tanto beber suco de folha amassada! Também achava linda a chuva, se emocionava com os pingos caindo na terra, fazendo as florzinhas crescerem robustas.

Ela sempre queria dar um jeitinho de ajudar a natureza a seguir seu rumo que ela tanto admirava. Assim, quando descobriu que as abelhas produziam o mel do néctar que retiravam das flores, tratou de plantar muitas delas. Todos os dias plantava uma de cor diferente, porque, para ela, as abelhas seriam muito mais felizes produzindo mel de tonalidades diferentes. Outra vez ela até roubou os sapatinhos de sua boneca, e queria porque queria, calçar a centopéia. Imaginava como devia ser tão difícil andar com tantos pés por aí descalça.. e se ela pegasse uma gripe?

Val era bem quietinha e observadora. Ela não sabia, mas guardava em seus cachinhos aquilo que ia recolhendo das pessoas. Um jeito especial de um falar, a risada singular de outro, a maneira de andar e gesticular de outro. Tudo que Val percebia ficava registrado nos seus caracoizinhos. E eles cresciam mais e mais à medida que a menina ia ficando mais velha.

Um dia, Val não sabia por que, ela tinha acordado com uma sensação de vazio, algo lhe faltava. Quando viu tinha uma mechinha de seu cabelo no chão: era o jeito de dançar engraçado de uma senhora gorda que ela vira certa vez. Val ficou muito intrigada sem saber direito o que tinha feito seu cabelo cair. E todos os dias, daí por diante, o fato se repetiu. Aos poucos Val foi perdendo todos os seus cachinhos. E ao passo que os perdia, uma sensação ia tomando conta dela. Ela começou a enxergar ao mundo e a si mesma de uma maneira diferente. Se olhava no espelho e não se reconhecia mais, não sabia quem era aquela. Seu rosto estava mais afilado, seus cabelos mais estirados, o corpo tinha tomado outras formas. Não sabia mais quem era, mas, ao mesmo tempo, sentia que estava renascendo mais verdadeira, mais ela. Agora ia descobrindo sua própria maneira de ser, seus gestos, maneira de rir, de andar e de falar. Seus passos eram mais firmes. Val tinha, enfim, se tornado ela própria, tinha amadurecido.

Mas, ao contrário do que se pensa, isso não quer dizer que ela fosse deixar de ser aquela menina que cuidava com tanto afinco dos animaizinhos e plantas de seu jardim. Agora se dedicava mais ainda. Achava um absurdo tratar os outros seres com desrespeito. Só comeria plantas, e os bichinhos que criava seriam somente seus amigos. Vez por outra, se via ela, no jardim, brigando com um ou outro bicho que contrariasse a liberdade dos demais. Val se preocupava tanto com o bem estar de sua horta que quebrava a cabeça tentando equacionar a cadeia alimentar de forma que a harmonia fosse sempre restabelecida, quando a natureza assim não o fizesse sozinha. É.. os cachinhos tinham ido embora, mas a mania da menina de dar um empurrãozinho no meio ambiente continuava. Já depois de grande, as principais preocupações de Val eram como desviar um corregozinho que atrapalhava a passagem diária das formigas, como fazer com que a água da chuva regasse por igual todas as plantas. Ela tinha até criado um orfanato de insetos, cada dia achava um novo filhote solitário para cuidar. A pena maior que ela tinha era daqueles que viviam pouco naturalmente. Por esses não podia fazer nada, somente os mantras diários que ela recitava por sua morte.

Por ser assim desse jeito, o grande problema que Val tinha era o de saber como se encaixaria num mundo tão diferente dela. Ela olhava ao seu redor e não conseguia entender nada. O fato de que algumas pessoas só se movimentavam no mundo em troca de outra coisa, que não o amor, deixava a menina muito confusa. Não conseguia entender o que acontecia no mundo, porque as pessoas não se preocupavam com as outras nem com a natureza, que lhe era tão cara. Como alguém podia pisar na grama? Arrancar uma flor? Bater num gatinho? Prender um passarinho numa gaiola? Nada disso fazia o mínimo sentido para ela. E cada vez que ouvia uma notícia dessas a menina chorava tanto que enchia os reservatórios de água de que sua hortinha precisava por um mês. (Até na hora de chorar ela conseguia trazer algum benefício aos seres!).

Val passou muito tempo tentando entender o motivo dessas coisas porque para ela não era suficiente cuidar somente do seu jardim. Ela não conseguia viver em paz enquanto soubesse que outros jardins não estariam a salvo. Então, pensou num jeito de propagar suas idéias, de expandir aos quatro ventos o amor que sentia pelas coisas do mundo, mas não conseguiu pensar em nada. Foi quando Val adormeceu que uma mágica se fez. A partir de então, mesmo dormindo, Val subia na colina mais alta das redondezas e emitia os sons mais bonitos que já se tinha ouvido. Também dormindo, os homens começavam a sonhar com coisas muito belas e acordavam com vontade de calçar centopéias, ajudar formigar e abelhas. Até hoje o som de Val ecoa mesmo sem ninguém saber, mesmo sem ela própria saber. É um som que sai direto do coração dela praqueles corações mais endurecidos. E ele tem um encanto que ninguém consegue explicar nem entender, só sentir.