terça-feira, novembro 23, 2010

Janaína escutou uma amiga dizer uma frase que muito lhe fez rir, disse ela "cansei de ser profunda". Ela se riu porque há muito tinha tomado a mesma decisão, desistiu da carreira acadêmica, das discussões filosóficas, das buscas pelo sentido último de todas as coisas e decidiu que não queria mais fazer outra coisa senão sentar-se em seu quintal e bordar. Vez por outra, alisar a cabeça da sua gatinha aqui, escutar um canto de passarinho acolá e nada mais. Tinha cansado de buscar explicações pra entender seus sentimentos, autoconhecimento, o quê? Ela se conhecia muito bem e sabia que quem ficava procurando isso estava na verdade era inventando sempre um eu diferente, criando eus eternamente. Quanto mais ficavam a questionar o que sentiam, indo pra milhões de terapeutas, estavam era criando sentimentos e inventando sofrimentos sem fim. Ela passou tanto por isso que cansou. Agora tudo era muito simples, o caminhão do lixo passava na hora certa, o leiteiro também, a flor que ela tinha plantando com carinho nascia quando tinha que nascer, tudo estava certo. Agora entendia o que os poetas queriam dizer quando falavam na simplicidade. Era isso sim, a vida era muito fácil de viver, esses filósofos é que teimam em complicar. Então fico com os poetas.

sábado, julho 03, 2010

Clarice gostava dos acentos, achava eles dignos. Sempre que escrevia com a caneta de tinta que seu pai lhe dera, sentia um prazer enorme em colocá-los. Como o sentem certos velhos ao assinar o contrato de compra de seu caixão, marrom, de estofado de veludo vinho, com um crucifixo dourado brilhante na frente. Enroscam um pouco o bigode grisalho e emitem um sorriso de canto de boca que suas netas sabem bem, trata-se de orgulho. Não, não iam viver suas vidas no sofá da casa de sua filha mais velha, economizando sua aposentadoria, pra acabar num caixão qualquer pago por aquela que lhe sustentou nos últimos anos. Assim, Clarice passava as tardes, escrevendo, falando de amores. Ela se sentia uma típica mulher, todas elas gostam de falar de amor. Acho que quando Deus inventou a mulher foi justamente pra acrescentar o elemento amor na vida. Aí veio o homem, pra trazer um pouco de distúrbio pra esse sentimento.Era bem isso que Clarice pensava quando se lembrava do romance recente do seu cachorro Juca com a cachorra da vizinha, que estava no cio. Dava dó ver o cachorro esmolando um pouco de amor, passando noites insone, a uivar, a latir. Qual não era sua felicidade quando via ao menos a patinha de Doralice pela fresta da porta. Sacodia o rabinho feliz, e passava ao menos essa tarde com um risinho no rosto. Clarice dizia isso, mas no fundo não falava de Juca, mas dela própria, afinal era só levar Juca pra passear no parque pra ele esquecer Doralice, balançava o rabinho, levantava a patinha em cada banco, corria feliz, latia para as crianças. Assim, aquilo que Clarice achava de Juca estava impregnado era na sua percepção das coisas. Via Juca pela sua própria lente distorcida. Mas ela não sabia disso. Então deixa ela se enganar, pelo menos ela não sofre pelo seu próprio amor, sofre apenas de pena do cachorro. E continuava ela, arrumando maneiras de trazer pequenas felicidades para o cão, para que ele esquecesse sua dor, fazendo assim, sem saber, ela própria esquecer da sua. Juca sabia disso tudo e maliciosamente, para que a dona lhe ajudasse, fingia estar amando, quando na verdade queria apenas trepar com a cachorra que ele achava uma bela de uma gostosa.

quinta-feira, junho 24, 2010

Pra eles

Para Sandokan:

Ele chegou caladinho caladinho, num sabia nem onde colocar as mãos, todo acabrunhado. Num sabia ele, mas dentro dele tinha uma sementinha, que era só levar um pouquinho de sol começava a crescer e crescer até que não conseguisse ficar dentro dele e saísse.

Um dia ele encontrou um objeto e se identificou muito com ele, era fechadinho, mas se a gente apertasse num botãozinho o que tava dentro saía e era muito bonito. Esse aparelho tinha um olho grande e tinha mania de engolir as coisas bonitas e transformá-las num papel.

Quando Sandokan descobriu esse segredo foi no mesmo dia que a semente tinha germinado tanto dentro dele que, ele próprio conseguiu transformar em papéis tudo aquilo que ele sentia e que tava preso. Agora ele num era mais calado, nem acabrunhado, ele começou a falar pra todo mundo daquela beleza que ele via nas coisas.

Para Monick e Nielly:

Um dia eu tava andando pelo Coque e quando reparei tinham duas florzinhas nascendo, iguaizinhas, só que uma era vermelha e a outra amarela. A vermelha era Monick. Flor-mulher, séria e firme, quer e consegue. Ela tem as pétalas de veludo e um miolo cheio de amor. A amarela era Nielly, eita flor doida danada!! Ela é tão espevitada que as vezes a gente num percebe que ela ta ali fazendo toda aquela festa, mas que também tem muito amor guardado. Suas pétalas são amarelo brilhante que dói no olho só de ver. Amo as duas no mesmo vasinho do meu coração, elas tão lá, uma do ladinho da outra, lindas. E hoje, mais uma pétala nasce pras duas. Desejo que uma água muito pura regue vocês todos os dias e um sol muito forte dê muita energia pra vocês continuarem crescendo assim.

Para Jô:

Quando eu encontrei pela primeira vez com Jô ela tava toda encolhidinha, encostada numa pedra. Eu vi tanta fragilidade naquela menininha, que não tinha nem 10 anos ainda. Mas eu podia ver também uma doçura imensa, que só podia sair de um coração bom. Aproximei-me da criança e lhe contei todas as histórias que eu podia lembrar, as aventuras mais incríveis, os romances mais tórridos. Ela adorava, viajava junto, sonhava, dava tantas gargalhadas. Mas cada vez que se lembrava de sua tristeza caía no choro outra vez.

Então mudei de tática, pedi que ela me contasse qual o motivo de suas lágrimas. Só que Jô não sabia me dizer. Ela sabia apenas que se tratava de algo que doía muito seu coração, que mexia lá fundo. Ela me disse que antes sabia sim qual era o motivo, mas que depois de ouvir tantas histórias, tinha esquecido. Não conseguia mais lembrar, por mais que se esforçasse. Então eu disse, mas Jô, será que o teu coração está doendo mesmo? Isso já aconteceu comigo uma vez quando eu era da tua idade. Eu tava sentindo uma tristeza muito grande e não sabia o que era, só sabia que alguma coisa lá dentro mexia muito, me deixava inquieta. Contei a minha mãe. Ela riu e me explicou: “Filha, isso se trata do amor. O amor é como uma lagarta. Você já viu a transformação que a lagarta passa pra se transformar em borboleta?”. Quando minha mãe disse isso eu sorri. Achei engraçado pensar que ia nascer uma borboleta no meu coração batendo as asinhas. Ai comecei a imaginar de que cor eu queria a minha borboleta. Ela ia ser muito bonita, muito vistosa, chega ia doer o olho de ver a luminosidade dela. E foi assim que eu esqueci a dor que eu tava sentindo. Esqueci da dor da transformação da lagarta que queria se tornar borboleta, e fiquei alegre de pensar no futuro, de saber que eu tenho uma borboletinha dentro de mim querendo bater asas. Esse foi um ensinamento que eu guardo até hoje. Sempre que meu coração está doendo eu me tranqüilizo, porque hoje eu sei que é só uma fase, que logo a borboleta dentro de mim vai voltar a voar.

Quando terminei de contar isso a Jô olhei e ela tinha adormecido. Mas dormia sorrindo, com certeza sonhando com sua borboleta. Notei que saía dela uma luz rosa muito pura, era a luz do amor se purificando. Então fui embora tranqüila. Sabia que quando Jô acordasse a dor teria ido embora, ela nem mais se lembraria dela. Então ela voltaria a ser a criança serena de antes, que colhia flores coloridas todos os dias no jardim pra dar a sua mãe e que brincava alegre com o irmão rolando no chão de tanto rir.

quinta-feira, junho 10, 2010

Ela me abraça séria, profunda, num faz a mesma festa dos demais. Só de ver o rosto dela tenho vontade de chorar. Chorar de sentir quanto sentimento tem ali. Tenho vontade de abraçá-la bem forte. Mas ela é tão magrinha que pode se partir ao meio...

segunda-feira, maio 24, 2010

E se Clarice me dissesse
O que tu não me disse?
E eu risse e pensasse que tu não me disse por tolice?
Aí eu ia dormir feliz com o sentimento que ela me traz, em paz
Lá no fundinho de mim ia ter um pocinho de água bem limpinha
Que ia lavar as dúvidas e me deixar que nem as roupas brancas das lavadeiras la de Jabitacá
Bem reluzentezinha e ia mimbora pro céu e nunca mais ia voltar
Pra num me aperrear.
E foi assim.

quinta-feira, maio 13, 2010

Tinham dias que ela acordava, colocava um batom vermelho e saía. Esses eram os dias em que ela queria ser outra. Pensava no que ela nunca faria e fazia exatamente essas coisas. É certo que existia uma limite pra isso. Nunca sairia de um jeito que acharia ridículo. Ser outra não era sinônimo disso. Mas gostava de ver a vida assim, cada dia por um ângulo novo. Num dia construía todas as certezas do mundo, só pra ter o prazer de destruí-las todinhas, uma a uma, no outro dia. Isso a fazia crescer. Perceber que nada existia, que nada era de um jeito só, e ao mesmo tempo que tudo podia ser. Só tentava amadurecer a tal ponto que não se decepcionasse quando suas certezas anteoriores ruissem. Queria ser assim, uma pessoa que não se afeta com essas coisas. Uma pessoa que só se afeta na medida certinha, nem demais, nem de menos. E isso era tão difícil pra ela, logo ela que se afetava com quase tudo, um poço carregado de água, que era arrastada pelas emoções. Então, cada vez que conseguia segurar o choro era uma vitória, se achava forte que só. Mas ao mesmo tempo ela gostava tanto de chorar, parece que ela se sentia mais viva nesses momentos, sentia a dor tomar todo seu corpo e sair, como uma catarse, naquelas lágrimas. Daquela vez ela chorou assim de propósito, como que para tirar tudo de ruim que tinha dentro dela, como se estivesse parindo algo, se encurvava toda, e aquilo saía de seu ventre e caía nas lágrimas, e saía no som. Mas quando ela conseguia segurar um choro também era muito bom. Porque lhe dava uma firmeza pra agir no mundo, mesmo ele sendo tão difícil. Ela ficava corajosa e acreditava que ia conseguir. Pode ser que esse seja um dilema que irá perpassar toda a sua vida. As pessoas fortes não caem em pranto por qualquer coisa. Ao mesmo tempo, as pessoas que nunca choram parecem tão duras, como se não existisse sensibilidade ali.
Mas no fim das contas, o que estava presente agora era a alegria, alegria do fogo, do entusiasmo, de ver muita energia nas pessoas e essa energia ir lhe contagiando. Ser alegre é tão bom! Mas sabia que também aí tinha que ter calma, afinal, essa alegria tinha que brotar de dentro dela, ela não podia ficar dependente da energia alheia. Mas também era muito difícil se controlar, afinal tudo acontecia ao mesmo tempo, idéias empolgantes de um lado, um “não sei porque, mas te amo tanto” de outro lado. Ah, assim ela não agüentava, não podia não amolecer!

domingo, abril 25, 2010

Assim como a gata

Todas as noites, quando a mãe lhe dizia "Filha, vá descer com o cachorro", ela fazia muxoxo mas descia. Ela não sabia o porquê da contrariedade se na verdade ela gostava muito de estar lá embaixo com Juca, era o único momento em que vivia realmente o lugar em que morava. Em que aquele lugar não era mais um lugar de passagem para entrada no seu quadrado fechado, no seu teto. Janaína sempre teve essa sensação, a de que o homem constrói quadrados pra se esconder dentro. E esse lugar fechado a sufoca, a impede de estar com o mundo, com o céu, com o ar livre. Parava pra pensar mesmo em como era tudo tão louco, as invenções humanas, se resfria ar, se condensa o ar em pequenos focos pra perceber a existência dele... Ela gostava mesmo era de sentir brisa. Tá certo, tinha uma invenção humana que ela gostava muito, era o vento que o carro consegue deixar tão fortemente bater no nosso rosto, assanhar nosso cabelo. É tão intensa a forma que ele nos toca nessa situação. Fora a forma de se ver a paisagem bem rápido, conseguindo apreciar tudo ao mesmo tempo, tudo que só a vista não alcança. O homem tem muitas invenções bonitas sim, pra num falar das câmeras... de vídeo, de fotografia. E ela ria de pensar essas coisas. Mas tudo pra dizer o quanto gostava de estar lá embaixo, deitada num banquinho frio de cimento, com os pés na grama, sentindo um ventinho, escutando-o balançar as folhas, com os olhos no céu e as mãos na gata, sua fiel companheira desses momentos. Enquanto Juca rebolava o bumbum andando, ou dava pulinhos, de orelha balançante, cheirando aqui e ali, fazendo xixi aqui e ali não percebia que as mãos de Janaína tocavam era a gata. Não se sabe quem acariciava quem, se Janaína à gata, se a gata à Janaína. Ela se roçava na garota com todo o corpo, esmolando carinho, enquanto a menina adorava olhar o céu e sentir aquele pelo macio, ir passando a mão pelas costelas da gata, pelas orelhas, arrodear a cabeça. Janaína se achava parecida com a gata, se pudesse trocar não teria mais um cachorro. Sua personalidade tinha muito mais a semelhança vagarosa e libertária da gata do que a serelepe e dependente de Juca... Olhar o céu era limpar a vista e se aquietar por inteira. Janaína tinha a sensação de não só estar olhando-o, como se faz com uma televisão, mas de adentrá-lo, como aqueles personagens que entram na tela. Era bem isso que sentia. Na verdade era essa a sensação que Janaína sentia com o mundo de forma geral. Ela estava sempre experienciando-o com seus sentidos todos. Por isso que muitas vezes a menina ficava muda, porque não conseguia dizer nada, racionalizar, esse era um momento posterior, antes ela só conseguia entrar e viver, e sentir. Depois é que ela podia realizar a suspensão e refletir sobre o momento. As duas coisas não podiam ser feitas ao mesmo tempo. Por isso ficava muito impressionada com alguns amigos que tinham a capacidade de viver os momentos ao mesmo tempo em que os objetivavam em palavras de maneira articulada e sistemática. O máximo que ela conseguia fazer era balbuciar algumas palavras que expressavam mais sentimentos que pensamentos. E ficava pensando se sempre seria assim, um pouco preocupada, já que isso a impedia de se relacionar às vezes, quer dizer, vamos ser sinceros, muitas vezes, a majoritária parte das vezes. E se encontrar com os outros era muito importante pra ela, por isso o dilema. Ela não conseguia viver sozinha com seu mundo, afinal a beleza de tudo era mais real com as outras pessoas, era uma escolha até política dela. Não, não queria ser só. Mas ao mesmo tempo como fazer se não conseguia ser sociável? O máximo que conseguia socializar era com os amigos que já tinha. E pra entrar mais um que seja no seu círculo de amigos era tão complicado que essa pessoa teria que ter muita paciência, já que ela era lenta com uma gata. Primeiro ela olhava bem, observava, tinha que se sentir segura. Até ela se sentir em casa ao ponto de ser natural era todo um processo. Por isso que tinha poucos amigos, afinal, haja paciência. Muitos que ela conhecia, por não terem a mesma velocidade que ela, achavam que ela não estava aberta e pronto iam se embora. Uma vez lhe disseram que ela parecia um “monólito” ou palavra parecida, que ela entendeu como uma rocha difícil de acessar. Pois era assim mesmo que ela se sentia. Porém, era o extremo oposto quando chegava o ponto de se sentir em casa, aí era sentimental até dizer basta. Adorava falar pros amigos que os amava, porque sentia um carinho tão forte por eles, um afeto. Essa é uma palavra boa, porque lembra calor, um calor que se sente por dentro, o mesmo de deitar numa cama bem quentinha em dia frio, com a cabeça num travesseiro bem fofinho. Era essa mesma sensação que tinha ao olhar os amigos sentia o calor que o afeto dá. Mas as vezes também, aí pode ser que seja o afeto já transformado em paixão, sentia uma pontadinha no peito, que lhe trazia um riso no rosto de felicidade das mais intensas, no sentido literal, porque parecia que via lá do fundinho de seu ser, é como se conseguisse acessar algo bem lá dentro. E essa sensação trazia felicidade. Mas às vezes trazia medo também, acho que o medo vem justamente da sensação de não querer perder aquilo. Então, olhar pro céu acalmava e trazia uma paz que fazia ela esquecer dessas coisas. E de tantas outras que a perturbavam. Eram doses homeopáticas da calma e da serenidade do céu o que ela tomava todos os dias pra conseguir ir vivendo, assim como a gata, que não pensava em nada disso, mas que Janaína sabia que compartilhava do mesmo motivo de estar ali.

terça-feira, abril 13, 2010

Tenho a sensação de estar amarrada, de querer muito agir, com todas as minhas forças, mas existe alguma coisa que me paralisa. Parece que esse mesmo algo me impede de me fundir com o todo, isso, a minha vontade é essa, de me fundir
Na sala, enquanto os outros cospem palavras sem nenhum sentido, palavras secas, mudas, ela não consegue escutá-las. Descobriu que não consegue mais se comunicar dessa maneira, agora só entende aquilo que a faz sentir, aquilo que toca sua pele e que a faz a todo instante ser já ontem. Descobriu que o caminho dos seus ouvidos passa por toda a superfície do seu corpo, pra depois penetrá-la por inteiro. Não ouve mais só com esse orifício, seu corpo todo agora se comunica.

domingo, março 21, 2010

Descobri que não amo os homens,
Mas, a literatura, acima de tudo.
Fui enganada até agora.
Eles se disfarçavam de literatura e me encantavam.
Ou, eu, disfarçava as histórias a tal ponto que me enredava na trama que criava
Acreditava tanto na história que tinha imaginado que não conseguia mais perceber que era ficção
Hoje sei.
Não amo os homens.
Amo a literatura
Mas, claro que se ele me fizer sentir do mesmo modo que Pessoa me faz,
Sim, darei uma chance a esse homem.
Mesmo já sabendo qual o verdadeiro motivo desse amor.